Se existe um segmento de cinema que tem sempre um motivo de interesse a mais (ao menos
pra mim) esse é o relacionado a música.
Isso porque se todo o
resto for moroso e contado com ideias poucas e zero estilo do
diretor, ao menos aquela trilha sonora integrante das cenas
geralmente rende alguns bons momentos pra assistir.
Exemplos de filmes musicais são vários e dentre alguns recentes estão Jersey Boys, Ray, Walk the Line, Inside Llewyin Davis, e uma série de outros que por vezes funcionam bem, e por outras fracassam, restando apenas a música mesmo.
No caso de "Ragamuffin",
a atenção parece ser dividida em outros interesses, mas que no fim
das contas não mudem o fato de ele ser o que realmente é: um filme
sobre uma pessoa e seus dilemas.
Que nem qualquer outra
cinebiografia que se preze.
No filme do
David Schultz, um primeiro olhar e os primeiros minutos levam a
crer que o fato de o personagem que o protagoniza ser cristão vai
direcionar e hermetizar o que é o cerne do roteiro.
Um ledo engano, e que só
prejudica a sessão pra quem define e rotula os interesses quanto a
cinema pelo que sinopses e padrões pré-moldados determinam ser algo
digno de umas 2 horas em frente a uma tela.
Antes de qualquer coisa,
o protagonista Rich Mullins é um cara enfrentando seus
problemas e pagando o preço que eles cobram durante sua vida
inteira.
Esqueça as
representações de pessoas auto-proclamadas perfeitas, com
aspirações heróicas inabaláveis que muitas vezes acompanham o que
os roteiros apresentam como sendo um cristão. Melhor esquecer também
os seres humanos preconceituosos e de latentes intentos violentos
repletos de ofensas aos demais na busca por "evangelização",
que povoam a maioria das vezes em que um cristão é retratado por
roteiristas.
Ragamuffin pode
surpreender tanto quem espera uma coisa quanto outra, lembrando o que
o Sam Childers de Redenção (Machine Gun Preacher)
já havia feito.
Isso porque Rich
Mullins, desde umas décadas atrás um dos mais importantes músicos da Contemporany Christian Music (ou CCM, pra facilitar), apesar de uma
trajetória possuidora além de sucesso comercial, de poder de
influência pra vários artistas ainda nos dias de hoje, foi um cara
simplesmente falível que nem eu, ou qualquer outra pessoa nesse
planeta.
Tal qual o próprio
personagem demonstra em cada fala, ao buscar ser sincero tanto em sua
retórica, quanto no seu modo de vida avesso a luxos, ou mesmo a
usufruir da quantia que lhe era de direito pelas suas composições,
venda de discos, e shows, o longa-metragem opta por essa sinceridade,
que não maquia ou finge uma roupagem blockbuster nos motivos que o
tornam além de um ícone da música cristã um andarilho em jornada
de auto-conhecimento.
O fato de ele haver
solicitado ao seu contador que lhe repassasse apenas um subsídio mensal pra que pudesse se manter, equivalente ao salário que
um trabalhador-médio recebia pra viver, destinando todo o restante para
instituições de caridade com certeza diz muito.
Em uma época na qual um
montante assombroso de pastores e "ministros de louvor"
julgam a relevância do trabalho pela soma final resultante das
bilheterias ou doações, saber de um cara que até o fim da vida não
soube, e não ligava a mínima pra saber quanto dinheiro recebeu
durante a sua carreira é pelo menos fora dos padrões aos
quais fomos acostumados.
De produção correta, e
estilo de direção com trejeitos quase intimistas por vezes, o
diretor quem sabe fosse mais efetivo se optasse por se desvencilhar
dos comentários em off do Rich Mullins que narra sua vida em
uma entrevista em uma rádio.
Ragamuffin não é
um filme choroso, e não cria extensas sequencias com trilha sonora
emotiva pra causar lágrimas no espectador.
Só carece de um pouco
mais de envolvimento em certas ocasiões.
Isso não tira o poder do
que tem a ser dito pelo relato da vida de Mullins, que não
possui grandes ocorrências ou reviravoltas hollywoodianas.
O que assombra o
protagonista são problemas tão comuns que fica bem claro que a
dificuldade dele em lidar é estritamente pessoal. Não se trata de
uma tragédia fácil de assimilar por um espectador sendo apresentado
ao seu drama. É mais que nem aquelas frustrações que todo mundo
tem, e que mesmo parecendo insignificantes ante grandes e trágicos
eventos são capazes ainda assim de influenciar pessoas por suas
vidas inteiras.
Só assim pra tentar
entender o quanto Rich Mullins lutou pra viver sua Fé
carregando o fardo de expectativas divergentes de sua carreira
artística.
Com seus problemas com
álcool e cigarro, o personagem interpretado pelo Michael Koch não é alguém alquebrado em sua vida
particular, e exemplar de pureza em suas apresentações repletas de
pausas pra diálogo com o público.
Suas indagações são
compartilhadas com seus ouvintes, que muitas vezes deixavam de ser
seus fãs após escutar as opiniões críticas dele a respeito do
modo de viver o cristianismo. Sempre almejando afastamento das
conveniências de interpretações bíblicas tendenciosas visando
conforto pessoal e julgamento alheio, pra ele buscar conhecer Deus
não poderia vir amarrado em mordomias pra poucos escolhidos, e
hipocrisia no trato com quem vivesse a vida de acordo com preceitos
diferentes.
Verdade que o filme não
parece tentar ser uma obra com jeitão de indicado ao Oscar. Sendo
falho em aspectos narrativos, e sem atuações marcantes, ao menos a
história de vida na qual o longa-metragem é baseado mantém o
enredo interessante.
Até descobrir o que é
ser um Ragamuffin (e quem sabe até depois), Rich Mullins não
foi o cara quase-messiânico tantas vezes esperado de um cristão
retratado no cinema. Também não é o mal em pele de cordeiro
respirando ganância e discriminação.
Afinal, o fato de ele ser
cristão não o torna infalível, ou absolutamente seguro de suas
ações o tempo todo.
Ser cristão não muda o
fato de que ele foi outra pessoa vacilando em momentos difíceis, e
tentando viver sua vida melhor não só pra si mesmo, mas pra quantas
pessoas pudesse alcançar.
E isso talvez seja
complicado de aceitar se por acaso as caracterizações maniqueístas
e simploriamente reducionistas em outras obras tiverem parecido
completamente verossímeis.
Quanto vale:
Ragamuffin. Recomendado
para: perceber que tem gente que lê na Bíblia além da metade do
versículo destacado por conveniência.
Ragamuffin
(Ragamuffin)
Direção: David Schultz
Duração: 137 minutos
Ano de produção: 2014
Gênero: DramaSign up here with your email
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