Estou terminando de ler Mago, O Aprendiz, do americano Raymond E. Feist, recém publicado no Brasil pela Saída de Emergência. O livro é uma alta fantasia com forte influência do trabalho de Tolkien, fato este referendado pelo próprio autor. No entanto, há diferenças básicas: enquanto em O Senhor dos Anéis temos uma descrição detalhada dos lugares, com ênfase na natureza, Feist prefere focar nas relações entre os protagonistas e nas arelações nobiliárquicas do mundo "medieval" de Midkemia, a Terra Média idealizada pelo autor. O seu ritmo também é mais rápido, em contraste ao estilo quase contemplativo de Tolkien.
No entanto, as semelhanças e
diferenças entre os dois trabalhos, como já explicitado, é comentado pelo
próprio autor. O que me chamou a atenção foi a similaridade entre o início de O
Mago, Aprendiz e o início da saga Rangers, a Ordem dos Arqueiros, do
australiano John Flanagan (Ranger’s
Apprentice, em inglês). É importante salientar que Ranger’s foi publicado
pela primeira vez em 2004 e O Aprendiz saiu em 1982.
Ranger’s é uma saga infanto-juvenil,
com uma pegada voltada para a aventura. A coleção de 11 livros (até agora) se
passa nas terras de Araluen, cuja geografia e política lembram a Europa
medieval: há nórdicos saqueadores, reinos em disputa e bárbaros orientais. Magos,
feiticeiros e criaturas fantásticas habitam as terras tanto quanto saqueadores
e nobres cavaleiros.
No início, Will, o principal
protagonista, é apresentado como um garoto órfão que vive junto a um castelo
com seus amigos. O livro inicia com a tensão causada pela proximidade do Dia da
Escolha; nesta ocasião, todos os garotos e garotas da região poderiam ser
escolhidos como aprendizes das diversas guildas que compunham a rede social
desenvolvida por Flanagan (contexto semelhante à Europa Medieval, onde a possibilidade
de se tornar um aprendiz em uma guilda poderia se tornar a diferença entre vida
e morte para famílias inteiras).
Então,
o pior acontece. O Dia da Escolha chega e Will não é selecionado. Para piorar,
Horace, o garoto com qual Will mantinha uma disputa nada amigável, acaba sendo
escolhido para a Escola de Guerra, a mais importante e prestigiada das
associações. Mas o destino lhe reserva uma surpresa: devido a sua curiosidade
inata, Will se interessa por uma estranha mensagem entregue por um Arqueiro.
Destemido, o garoto invade o castelo e, devido a sua coragem e audácia, acaba
sendo escolhido como aprendiz pelo Arqueiro Halt. O seu novo mestre é um
sujeito esquivo e visto com desconfiança pela população geral. Ele faz parte do
conselho do rei, mas não mora no castelo e tampouco convive com os demais nobres. Will
acaba por aceitar trabalhar com Halt; aos poucos, ele descobre que os arqueiros
são, na verdade, um grupo especializado de espiões e agentes que agem pela manutenção
da paz e da ordem na sociedade.
Bom, e aí?
A questão é que o início de Mago, o
Aprendiz, é muito semelhante: Pug é um garoto órfão, que mora no castelo de Crydee
e é tutoreado pelo cozinheiro, que tem um filho da mesma idade. Tomas e Pug,
assim como os demais garotos, crescem realizando diversos trabalhos na cidade. O
livro inicia um pouco antes da festa do Solstício de Verão, quando os mestres
das diversas corporações profissionais precisam escolher seus pupilos. Pug não
é escolhido por ninguém (Tomas entra para a infantaria) e, quando está prestes
a deixar a festa, envergonhado, Kulgan, o Mago, o escolhe como aprendiz.
Perplexo e sem saber o que fazer, Pug acaba aceitando, apesar das reservas que
ele tem com o Mago:
Ele
(o Mago) fazia parte da corte do Duque, mas não deixava de ser mago, alvo de
desconfiança, geralmente tido em baixa consideração pelo povo.
A história em Ranger’s é mais
simples, voltada realmente para um público mais jovem que os leitores de Mago,
o Aprendiz. A própria escrita evidencia esta suposição, assim como as relações
entre os protagonistas e a inclusão de temas mais complexos, como amor e sexo.
No entanto, é notável a similaridade
entre o início das duas histórias. Obviamente, histórias de aprendizes abundam
na literatura, principalmente a fantástica. Tanto o contexto social quanto a
relação social mestre-aprendiz condiz
com boa parte das narrativas desenvolvidas. E o mesmo contexto pode ser
utilizado para abordar coisas completamente diferentes (a história de Ranger’s
e do Mago são diferentes em vários aspectos depois desta introdução, apesar do
tema dos invasores ser recorrente).
Mas é
interessante divagar sobre até onde o autor pode trabalhar com o conceito de homenagem ou cópia. Um autor estreante com um trabalho que narrasse a história
de um menino que se descobre feiticeiro e vai para uma escola, mesmo que este não
seja órfão e que o principal antagonista fosse o próprio diretor, dificilmente escaparia
da sombra de Harry Potter. Ao mesmo tempo, a produção sistemática de livros,
histórias em quadrinhos, filmes e toda e qualquer obra narrativa acaba por gerar uma situação onde a originalidade, em estado puro, é algo praticamente inexistente. Muitos
dizem que se alguém realmente acha algo original
é porque anda lendo pouco...
Não
tenho como saber se Flanagan
leu o trabalho de Feist
e resolveu utilizar o mesmo ponto de partida ou se ele simplesmente utilizou o
arquétipo do aprendiz, que é notório na literatura. De qualquer modo, é óbvio
que o fato de Mago ser um livro mais antigo e não ter a mesma popularidade de
Tolkien ou Rowling contribuiu para que o autor australiano não sofresse com a
pressão exercida por fãs enlouquecidos (só para ter uma ideia, Mago só chegou
ao Brasil em 2013 e eu mesmo li ele muito depois de ter lido Rangers).
É bom termos isso em mente antes de atirarmos a próxima pedra...
A.Z.Cordenonsi
Pai, marido, escritor, professor universitário
Tem dois olhos divergentes e muito pouco tempo
página do autor - duncan garibaldi - facebook - twitter
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