Ragamuffin (2014)



Se existe um segmento de cinema que tem sempre um motivo de interesse a mais (ao menos pra mim) esse é o relacionado a música.
Isso porque se todo o resto for moroso e contado com ideias poucas e zero estilo do diretor, ao menos aquela trilha sonora integrante das cenas geralmente rende alguns bons momentos pra assistir.
Exemplos de filmes musicais são vários e dentre alguns recentes estão Jersey Boys, Ray, Walk the Line, Inside Llewyin Davis, e uma série de outros que por vezes funcionam bem, e por outras fracassam, restando apenas a música mesmo.

No caso de "Ragamuffin", a atenção parece ser dividida em outros interesses, mas que no fim das contas não mudem o fato de ele ser o que realmente é: um filme sobre uma pessoa e seus dilemas.
Que nem qualquer outra cinebiografia que se preze.
No filme do David Schultz, um primeiro olhar e os primeiros minutos levam a crer que o fato de o personagem que o protagoniza ser cristão vai direcionar e hermetizar o que é o cerne do roteiro.
Um ledo engano, e que só prejudica a sessão pra quem define e rotula os interesses quanto a cinema pelo que sinopses e padrões pré-moldados determinam ser algo digno de umas 2 horas em frente a uma tela.



Antes de qualquer coisa, o protagonista Rich Mullins é um cara enfrentando seus problemas e pagando o preço que eles cobram durante sua vida inteira.
Esqueça as representações de pessoas auto-proclamadas perfeitas, com aspirações heróicas inabaláveis que muitas vezes acompanham o que os roteiros apresentam como sendo um cristão. Melhor esquecer também os seres humanos preconceituosos e de latentes intentos violentos repletos de ofensas aos demais na busca por "evangelização", que povoam a maioria das vezes em que um cristão é retratado por roteiristas.

Ragamuffin pode surpreender tanto quem espera uma coisa quanto outra, lembrando o que o Sam Childers de Redenção (Machine Gun Preacher) já havia feito.
Isso porque Rich Mullins, desde umas décadas atrás um dos mais importantes músicos da Contemporany Christian Music (ou CCM, pra facilitar), apesar de uma trajetória possuidora além de sucesso comercial, de poder de influência pra vários artistas ainda nos dias de hoje, foi um cara simplesmente falível que nem eu, ou qualquer outra pessoa nesse planeta.
Tal qual o próprio personagem demonstra em cada fala, ao buscar ser sincero tanto em sua retórica, quanto no seu modo de vida avesso a luxos, ou mesmo a usufruir da quantia que lhe era de direito pelas suas composições, venda de discos, e shows, o longa-metragem opta por essa sinceridade, que não maquia ou finge uma roupagem blockbuster nos motivos que o tornam além de um ícone da música cristã um andarilho em jornada de auto-conhecimento.
O fato de ele haver solicitado ao seu contador que lhe repassasse apenas um subsídio mensal pra que pudesse se manter, equivalente ao salário que um trabalhador-médio recebia pra viver, destinando todo o restante para instituições de caridade com certeza diz muito.
Em uma época na qual um montante assombroso de pastores e "ministros de louvor" julgam a relevância do trabalho pela soma final resultante das bilheterias ou doações, saber de um cara que até o fim da vida não soube, e não ligava a mínima pra saber quanto dinheiro recebeu durante a sua carreira é pelo menos fora dos padrões aos quais fomos acostumados.



De produção correta, e estilo de direção com trejeitos quase intimistas por vezes, o diretor quem sabe fosse mais efetivo se optasse por se desvencilhar dos comentários em off do Rich Mullins que narra sua vida em uma entrevista em uma rádio.
Ragamuffin não é um filme choroso, e não cria extensas sequencias com trilha sonora emotiva pra causar lágrimas no espectador.
Só carece de um pouco mais de envolvimento em certas ocasiões.
Isso não tira o poder do que tem a ser dito pelo relato da vida de Mullins, que não possui grandes ocorrências ou reviravoltas hollywoodianas.
O que assombra o protagonista são problemas tão comuns que fica bem claro que a dificuldade dele em lidar é estritamente pessoal. Não se trata de uma tragédia fácil de assimilar por um espectador sendo apresentado ao seu drama. É mais que nem aquelas frustrações que todo mundo tem, e que mesmo parecendo insignificantes ante grandes e trágicos eventos são capazes ainda assim de influenciar pessoas por suas vidas inteiras.
Só assim pra tentar entender o quanto Rich Mullins lutou pra viver sua Fé carregando o fardo de expectativas divergentes de sua carreira artística.
Com seus problemas com álcool e cigarro, o personagem interpretado pelo Michael Koch não é alguém alquebrado em sua vida particular, e exemplar de pureza em suas apresentações repletas de pausas pra diálogo com o público.
Suas indagações são compartilhadas com seus ouvintes, que muitas vezes deixavam de ser seus fãs após escutar as opiniões críticas dele a respeito do modo de viver o cristianismo. Sempre almejando afastamento das conveniências de interpretações bíblicas tendenciosas visando conforto pessoal e julgamento alheio, pra ele buscar conhecer Deus não poderia vir amarrado em mordomias pra poucos escolhidos, e hipocrisia no trato com quem vivesse a vida de acordo com preceitos diferentes.


Verdade que o filme não parece tentar ser uma obra com jeitão de indicado ao Oscar. Sendo falho em aspectos narrativos, e sem atuações marcantes, ao menos a história de vida na qual o longa-metragem é baseado mantém o enredo interessante.
Até descobrir o que é ser um Ragamuffin (e quem sabe até depois), Rich Mullins não foi o cara quase-messiânico tantas vezes esperado de um cristão retratado no cinema. Também não é o mal em pele de cordeiro respirando ganância e discriminação.
Afinal, o fato de ele ser cristão não o torna infalível, ou absolutamente seguro de suas ações o tempo todo.
Ser cristão não muda o fato de que ele foi outra pessoa vacilando em momentos difíceis, e tentando viver sua vida melhor não só pra si mesmo, mas pra quantas pessoas pudesse alcançar.
E isso talvez seja complicado de aceitar se por acaso as caracterizações maniqueístas e simploriamente reducionistas em outras obras tiverem parecido completamente verossímeis.


Quanto vale:


Ragamuffin. Recomendado para: perceber que tem gente que lê na Bíblia além da metade do versículo destacado por conveniência.

Ragamuffin
(Ragamuffin)
Direção: David Schultz
Duração: 137 minutos
Ano de produção: 2014
Gênero: Drama

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