Gyo



Eu já disse aqui, mas não me custa nada reiterar: historias em quadrinhos de terror, de manter clima de cagaço mesmo, são raras.
Mas sem isso, elas meio que não têm propósito.
Acontece que, pra surpresa de qualquer um que rejeite quadrinhos japoneses utilizando a argumentação complexa de que não lê "porque são japoneses" ou "porque tem que ler de trás pra adiante", vai consequentemente perder a chance de encontrar obras que, consistentemente podem ser chamadas de terror.
Já foi mencionado aqui anteriormente o trabalho do autor Hideshi Hino, e dessa vez falo de outra obra, dessa vez do quadrinhista Junji Ito (o mesmo do humor familiar com trejeitos quase sombrios "Cat Diary").

Eu sei que os maneirismos do chamado cinema de terror oriental que proliferou verões atrás (com refilmagens inclusive) ainda são muito presentes, e é difícil desvencilhar uma coisa da outra.
Acontece que nos quadrinhos, ao menos, a situação é muito mais metalcore.
Mas claro que, pra eu me prestar a comentar a respeito é porque isso vai além do gore e desconforto de cenas chocantes. Isso é pouco e qualquer nerd new school conseguiria criar alguma cena medonhamente bagunçada de sanguinolência pra irritar leitor sensível.


Eu tô falando aqui em roteiro.
Sem ser pseudo-intelectual nem nada.
Ainda é grotesco e grosseiro, mas isso somado a um enredo bem feito, são outros quinhentos.

Na trama de Gyo (palavra que significa peixe, em japonês) um casal em férias se depara com um fenômeno bizarro: peixes começam a sair da água e perambular pela superfície com o amparo de um conjunto de pernas (ou patas, sei lá. É algo meio aracnídeo). Junto com os peixes, um fedor similar ao de cadáveres toma o ar por onde eles passam.
O traço de Junji Ito é ao mesmo tempo bonito e sujo, e as cenas ganham um ar sombrio naturalmente. Enquanto isso, a narrativa não finge um mistério a ser revelado. A historia está sempre em movimento, e a cada capítulo (são 19, no total) novos fatos surgem revelando mais sobre o estranho fenômeno que aos poucos se espalha pelo resto do Japão levando caos, afinal, não são apenas peixes pequenos que emergem nas praias, e logo ver tubarões devorando pessoas nas ruas vira algo quase corriqueiro. Mas isso não é o pior, afinal, o que quer que tenha provocado isso, parece ser capaz de trazer outras formas de horror emoldurando um apocalipse jamais visto (por mim, ao menos), seja em cinema, quadrinhos, literatura, ou televisão.
Então, sim, Gyo é uma das historias pós-apocalípticas mais originais já criadas.


O que me veio à mente mais próximo a Gyo, foi na verdade "Pássaros" do Hitchcock. Isso não apenas pelo fato de tudo se iniciar com criaturas rotineiramente pacíficas que surgem perturbando a ordem e trazendo horror aos humanos.
É um discurso nas entrelinhas que ambos partilham, e servem de base a questionamento.
No caso de Gyo, além do clima de terror bem elaborado, e dos personagens interessantes, sobra crítica ao governo, menções à 2ª Guerra Mundial, e aquele misto de tecnologia e sobrenatural que dizem muito ao refletir elementos culturais e históricos do Japão.
Além desse, claro, o excelente filme sul-coreano "O Hospedeiro", do diretor Bong Joon-Ho também surge na memória por aspectos até bem óbvios.
E claro, Gyo é uma leitura muito divertida.
Uma historia de horror à moda antiga, com cenas impactantes, e clima pós-armagedon pra esquecer 98% dos exemplares do gênero que têm surgido no cinema, por exemplo.

Se é pra apontar qualquer eventual falha na obra (e é pra fazer isso, claro. É pra isso que eu sou pago) eu destaco alguns detalhes do roteiro que soam coincidência demais. Além de alguns elementos inexplicados e o momento circense que surgem aparentemente mais pro espetáculo do que pra acrescentar muita coisa.
Porém, posso dizer que, no conjunto da obra, são tropeços menores, e que não vão tirar o sorriso do leitor imerso no universo lúgubre e fétido criado por Junji Ito pra ser casa dos seres humanos.


Após o desfecho do 19º e último capítulo, se seguem duas historias curtas.
A primeira e com menor número de páginas, é "O Triste Conto da Coluna Principal", com humor negro saliente, e uma crítica nada sutil.
E encerrando os trabalhos está "O Enigma da Fenda de Amigara", que nada mais é que uma fábula doentia e de aura aterradora singular pra fechar bem esse passeio pela mente do autor.


Em tempo, Gyo teve uma adaptação para o cinema em um longa-metragem de animação de mesmo nome em 2012.

Gyo. Recomendado para: quem sentiu algum receio das criaturas das profundezas pela última vez ao assistir o clássico Tubarão, e vive em busca de sensação similar desde então.

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