Chega
a ser uma grata surpresa, em uma temporada na qual tantos projetos
pretensiosos (no sentido aceitável da palavra) tomaram as listas de
indicações a melhores filmes, assistir um trabalho narrado de forma
tradicional que nem esse "Selma",
e que vai concorrer também na edição 2015 do Academy Awards, na
categoria melhor filme.
O
que é parte da polêmica instaurada relacionada a isso, é o fato de
o longa-metragem da diretora Ava
DuVernay ser
considerado um dos melhores filmes de 2014, mas ter sido ignorado em
quase todas as outras categorias, com exceção de "Melhor
Canção", com a música pelo
John Legend e
Common.
É
algo interessante tentar entender que tipo de critério julgou uma
produção boa o suficiente pra constar na lista principal, mas ao
mesmo tempo não encontrou destaques que justificassem constar em
algumas das outras categorias.
Afinal,
"Selma"
é aquele tipo de filme que pelo menos tem que ter atuações fortes,
sem as quais uma obra dessas jamais conseguiria mais efeito que algum
telefilme corriqueiro e não-memorável.
E
mesmo que se espere de grande parte do elenco esse nível de atuação,
nas costas do David
Oyelowo
estava o peso do mundo, por ser ele a encarar o desafio de trazer às
telas o próprio Martin
Luther King Jr., em
sua cruzada pelos direitos humanos.
A
história começa a partir de um momento de grande reconhecimento,
com o recebimento do Prêmio Nobel da Paz, mas não demora pra ficar
claro que não faz a mínima diferença diante da realidade em grande
parte dos EUA, nos anos 60.
O
próprio Doutor
King entende
e avalia a situação da maneira mais fria possível, em uma
composição de personagem que o torna antes de um apaixonado devoto
aos seus ideais, um estrategista, ciente da importância da presença
da mídia nos protestos, e de que depende dos erros do outro lado pra
que suas ações pacíficas surtam efeito que chegue a incomodar a
paz do presidente Lyndon B. Johnson (Tom Wilkinson).
Principalmente
por isso a escolha da cidade de Selma, no Alabama, pra ser palco
desse embate que envolve caminhar nas ruas, pacificamente, e em
silêncio, o que pras "pessoas de bem" é uma clara afronta
por parte dessa "gente de cor".
O
resultado disso é um espetáculo de brutalidade e covardia por parte
da polícia e da população local, em discordância com essa
reivindicação dos afro-americanos pelo direito ao voto, que
conforme Martin
Luther King esclarece
ao Presidente implica em muito mais do que aparenta.
Então
ficam em negociação, cada um com os recursos que escolheu, de um
lado "Doutor King incitando a população", conforme
pontuam os registros de arquivo durante o filme, de outro a neutralidade do Presidente, e de outro o Governador George Wallace (Tim
Roth),
em um clima de tensão acentuado a cada nova ação de cada um deles.
Porém,
a truculência resultante das ações do Governador, por intermédio
do sheriff Jim Clark
(Stan Houston) não eram nenhuma surpresa pro protagonista, que
apesar de sofrer com cada vítima de espancamento, reconhece que a
forma de mobilizar as pessoas distanciadas do que ocorre nas ruas de
Selma é pelo distúrbio das condições que favorecem o seu
conformismo. Afinal, se as cenas de violência rodarem o país em
capas de jornais, e matérias televisivas, quem sabe isso abale o
conforto e a posição inerte na qual tantos se acomodam ignorando o
sofrimento alheio.
Existe
um limite que não deve ser ultrapassado, mas também ele está
disposto a sacrificar a si mesmo frente a opressão.
Porém,
o que talvez seja o mais interessante no personagem que Ava
DuVernay trouxe
às telas a partir do roteiro do Paul Webb seja encará-lo
enquanto persona estritamente humana, com falhas, limitações,
dúvidas e fraquezas. Não é o retrato idealizado de conduta moral
inabalável. Ele se questiona e comete erros, e mais de uma vez vive
conflitos quanto ao próximo passo a seguir, sejam em função das
consequências na sua própria casa, representadas pelos diálogos
com a esposa Corey
(Carmen Ejogo),
ou com as divergentes opiniões de seus aliados sobre os rumos que
o Movimento deve tomar.
Nesse
ínterim, a presença de Malcolm
X (Nigel Thatch)
além de sua importância pra história e de reforçar por contraste
o quanto é sacrificial a luta pacífica de King,
traz mais do caráter realista nas relações políticas em choque.
Dirigido,
conforme mencionado anteriormente, de forma tradicional, "Selma"
tem bem claros seus momentos e intenções.
A
câmera acompanha seus personagens sem invencionices, e seus diálogos
chamam atenção mesmo pelas atuações fortes, enquanto se mostra
intencionado a retratar de forma épica a marcha da multidão que
pretende ir de Selma até a cidade de Montgomery, mesmo tendo grandes de
chances de ser impedida pelo espancamento da polícia, o que também
é mostrado de forma a potencializar a comoção da plateia.
E
novamente, fosse outro elenco, talvez isso não funcionasse. No
entanto, não bastasse a poderosa atuação de David
Oyelowo,
que interpreta Martin
Luther King de
maneira digna da indicação a melhor ator que lhe foi negada, o
elenco de apoio demonstra entrega aos seus personagens, seja
expressando fraqueza, preconceito, força, ou simplicidade.
Por
isso, muito da grande obra que é "Selma"
também se deve a Wendell Pierce, Tom Wilkinson, André Holland, Tim Roth,
Oprah Winfrey (ela mesma), Giovanni Ribisi, Cuba Gooding Jr., Martin Sheen, Dylan Baker, e os demais do engajado elenco, que
sustentam o impacto de realidade mesmo quando a direção se excede
um pouco na busca por um viés dramático, em especial nas cenas de
protesto, que se mantêm emocionantes pelo contexto armado e por
enxergarmos nas pessoas que compõem a multidão anseios legítimos
pra prosseguir diante de ameaças.
É
dessa forma que este consegue ser um drama comovente sem de maneira
alguma ser piegas ou melodramático, tendo um enredo mostrando pessoas repletas de imperfeições e de conduta por vezes
questionável, o que amplifica a intensidade do roteiro.
"Selma"
pode não ter pose de filme visionário, e passar uma aura de
simplicidade que numa dessas o faz parecer menor que outras produções
em que o estilo e determinados recursos técnicos acabam se
destacando mais do que a trama a ser narrada.
Porém,
em se tratando do quanto consegue dizer e da real capacidade de
envolver o espectador, com identificação pela profundidade das
motivações dos personagens, poucos seriam os longa-metragens da
temporada que lhe fariam frente.
Recomendá-lo
não vai ajudar ninguém a bancar cult.
Afinal,
é apenas um bom filme bem contado, o que parece muitas vezes não
ser o objetivo no cinema cult.
Selma:
Uma Luta pela Igualdade. Recomendado
para: uma competente revisita a um evento do qual o significado deve ser lembrado sempre.
Selma:
Uma Luta pela Igualdade
(Selma)
Direção:
Ava DuVernay
Duração:
128 minutos
Ano
de produção:2014
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