Planetary: mantendo o mundo como ele é




A indústria dos quadrinhos (no ocidente) geralmente segue alguns preceitos comuns a outras mídias. A grande maioria dos trabalhos mais famosos se encontra na Marvel e DC, empresas onde os artistas são limitados artisticamente por anos de cronologia e decisões editoriais. Sendo assim, geralmente o local onde eles possuem mais espaço para trazerem ideias novas são em selos (subdivisões) menores dentro de ambas ou tentar a sorte em editoras menores. Não raramente, por conta dessa oportunidade maior para novidades, esses trabalhos isolados chamam a atenção e vendem mais que as linhas regulares de super-heróis (que diga Mark Millar com seu Kick-Ass ou Kirkman e o fenômeno Walking Dead).

Uma dessas séries que ganhou muito destaque na última década nasceu no relativamente pequeno selo Wildstorm, atualmente comprado pela DC e integrado ao seu universo regular. Escrita pelo consagrado Warren Ellis e desenhada por Cassaday, um dos melhores (e que mais atrasa) desenhistas da atualidade, Planetary é uma pérola da indústria mainstream dos quadrinhos.


Como toda grande obra, ela não é para qualquer um. E nesse caso, o louco do Ellis chuta o pau da barraca: o seu público alvo é exatamente você que está lendo esse blog - alguém com extremo conhecimento da cultura em geral, seja ela literária, cinematográfica ou do próprio mundo dos quadrinhos. Para ficar mais claro, a trama das 27 revistas publicadas entre 1999 e 2009 gira em torno de um grupo de três "arqueólogos do impossível", membros da organização Planetary que buscam explorar a história secreta do século XX.

Esse objetivo os leva a viajar para os diversos cantos do planeta (e para fora dele também). Mas essa viagem não é meramente geográfica: a "história secreta" não é nada menos do que o legado cultural da humanidade no "nosso" planeta terra, brilhantemente traduzido para o universo dos quadrinhos em forma de metalinguagem e referências.



Deixa eu facilitar a explicação: cada uma das 27 edições de 22 páginas trata de um assunto diferente e fechado, e elas juntas contam uma história coesa. Além disso, elas homenageiam diferentes segmentos da cultura. Na primeira edição vemos o recrutamento de Elijah Snow, o protagonista, por Jakita Wagner e o Baterista  .Sua primeira missão para o Planetary é investigar o paradeiro de Doctor Exel Brass, o qual desapareceu após sua equipe descobrir a existência de um Multiverso e enfrentar uma equipe de um universo invasor. Doc Brass é uma referência feita pelo autor ao Doc Savage, famoso personagem da literatura Pulp. Na sua equipe estão referências a Tarzan, Fu Manchu e outros heróis Pulp. Já a equipe que invade e entra em conflito com a de Brass é baseada na Liga da Justiça da DC. A grande sacada de Ellis é representar como a indústria dos quadrinhos surgiu na década de 30 e tomou lugar da Pulp Fiction, "matando" a maioria daqueles heróis para as gerações de hoje.

E o primeira metade das histórias segue nesse ritmo. Na segunda edição eles visitam uma ilha japonesa em que a radiação de Hiroshima causou mutações e gerou criaturas gigantescas. A homenagem fica para o cinema de monstros do Japão. Na terceira eles vão para Hong Kong investigar um policial morto que busca por vingança. A homenagem da vez é para o cinema de ação de Hong Kong, contando com perseguição de carros, câmera lenta e outros detalhes que fariam John Woo chorar de emoção. Puxando de cabeça, lembro de uma edição que trata dos quadrinhos adultos da Vertigo (a melhor, na minha opinião), outra que trata dos filmes B de ficção científica e outra do cinema de artes marciais do oriente.


Warren Ellis acha que a época do Godzilla já está morta

Não se deixem levar pela minha resenha. As referências colocadas pelo autor não são simples como parecem. Ele inunda de detalhes que apenas os mais atentos perceberão (ou procurarão na internet que nem eu), o que me faz achar que ele passou a infância acorrentado na frente da televisão. Sua metalinguagem é absurda, digna de Alan Moore, fazendo cada edição ter muito mais do que um significado. Ellis também trabalha muito bem as habilidades especiais de cada personagem. Sim, Snow, Jakita e o Bateirista possuem poderes, mas isso não torna a história espalhafatosa. Não é pelo fato de Snow ter controle sobre o frio que ele joga bola de neve nos inimigos - ele prefere congelar a água do cérebro dos infelizes.

Quem conhece os outros trabalhos do autor sabe que sua especialidade é ficção científica. E ele não decepciona os leitores, trabalhando inúmeros conceitos científicos ao longo das edições e colocando uma importância gigantesca para o roteiro neles. O mais famoso aparece na primeira edição, e se trata dos universos como um floco de neve. Os arqueólogos do impossível descobrem que o universo em que vivemos é 2D, sendo tudo o que existe nele um holograma em três dimensões. O multiverso em si é o único 3D real, tomando a forma de um floco de neve, em que cada ramificação compreende um universo diferente em 2D. O multiverso, então, possuiria o formato de planos achatados de informação, como se fosse um disco rígido. Se você entendeu alguma coisa disso, Planetary é pra você.

Deus sabe quantas vezes li a obra pra entender essas teorias

A primeira parte da história finaliza com a revelação da identidade do "quarto homem" e financiador da organização, que pode ser desde Bill Gates à Hitler mas não é nenhum dos dois. A segunda parte da trama se foca mais no combate entre o Planetary e "Os Quatro". Os vilões são claras referências ao Quarteto Fantástico, primeira série de quadrinhos da Marvel (coincidência?), possuindo inclusive os mesmos poderes, ainda que de forma mais realista. O confronto ocorre porque ambos buscam os mesmos objetivos, mas Os Quatros pretendem manter esse conhecimento para si, enquanto o Planetary pretende usar para mudar o mundo.

Não tem como falar da série sem citar a arte de Cassaday. É simplesmente fantástica, contendo traços limpos e um nível de detalhe gigantesco. Destaque também para as capas e o estilo de ilustração, que imitam os objetos homenageados. A edição 11, por exemplo, faz referência à James Bond, e a capa remete a antiga série da Marvel do espião Nick Fury. São esses detalhes que enriquecem ainda mais a obra.

Infelizmente é muito difícil conseguir as edições ou encadernados no Brasil, sendo que a maioria saiu pela extinta revista Pixel. O jeito é "importar" na baía dos piratas mesmo. Fica a torcida para que a Panini lance os encadernados novamente e a edição 27 venha para o Brasil, já que nunca foi publicada aqui.

Recomendado para: todo mundo que lê esse blog. Vá atrás que não tem como se arrepender, com certeza vai ser uma das melhores leituras do seu ano. Ainda sai com o bônus de entender um pouco mais de física e decifrar as referências mais obscuras do mundo nerd. Afinal, "esse é um mundo estranho. Vamos mantê-lo assim."

Para quem quiser ler um pouco mais, a revista O Grito publicou um ensaio muito interessante sobre a série:
http://revistaogrito.ne10.uol.com.br/page/blog/2010/09/18/ensaio-planetary/

Previous
Next Post »