Wilson, de Daniel Clowes



Em certos momentos você se depara com algumas obras que te fazem parar para pensar. Não porque elas são magníficas provas da existência de Deus ou contém reflexões que vão te fazer agir como Mahatma Gandhi daqui para frente, mas porque elas tocam em um ponto sensível. Devo dizer que a história em quadrinhos Wilson me causou esse feito. Não é difícil se sentir mal lendo.

O que vai te causar incômodo não são cenas de violência explícitas, erros de português absurdos ou roteiros escritos por quem esqueceu de tomar sua dose diária de medicamentos faixa-preta. Daniel Clowes toma o caminho do realismo para contar a história do personagem que dá nome a obra. Wilson é um senhor de meia idade arrogante, preconceituoso, cínico e principalmente solitário. A obra é composta de 70 quadrinhos de uma página que são auto-suficientes, mas juntos contam a trajetória desse cidadão odiável.

Outro aspecto interessante é que, mesmo sendo desenhado e roteirizado pela mesma pessoa, cada uma se diferencia das outras pelo traço. O autor revela que escolheu essa abordagem para representar as diferentes percepções assumidas em nossa memória de cada momento de nossa vida, dependendo da intensidade e importância. Alguns desses traços inclusive se repetem em ocasiões parecidas da história do personagem - apesar de eu estar seguro de que também se repetem porque o pobre coitado do autor não conseguia inventar mais nada diferente.

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A partir daqui quero deixar claro que deixarei de lado uma análise mais imparcial para mergulhar fundo na minha visão sobre a obra, o que caracterizará este post mais como um ensaio ou um artigo opinativo do que uma análise. Você que já leu a hq provavelmente vai discordar em alguns ou todos os pontos, mas este é um dos objetivos de qualquer obra de arte: gerar discussões.

Daniel Clowes deixa claro já nos primeiros "capítulos" que Wilson é uma pessoa solitária. Perdeu sua mãe quando jovem - e a página em que ele conta esta experiência foi a primeira que realmente me chamou a atenção - e seu pai no começo da obra. Também se separou faz 16 anos de sua antiga mulher, chamada Pippi, o que deixa em sua companhia diária apenas sua cadelinha, chamada Pepper. Seu animal de estimação parece ser seu único amor verdadeiro e seu refúgio, o único ser em que ele realmente se importa.

A solidão deixou efeitos profundos em Wilson. Não é preciso ser um pseudo-psicólogo para entender logo de cara. O protagonista, após todos os insucessos, se fechou em seu mundo. Ele reage de forma agressiva a qualquer imprevisto, sendo que apenas ele está certo e o resto do mundo errado. É o seu novo mecanismo de defesa contra o mundo que o abandonou.

Clowes se utiliza de monólogos e hipérboles para demonstrar e explicar as atitudes do protagonista. Wilson costuma puxar papo com estranhos no dia a dia, onde costuma destilar todo seu ódio e cinismo. Como é desempregado, ataca um consultor de negócios: "daqui a trinta anos você vai estar no seu leito de morte pensando 'o que aconteceu? Que fim eu dei aos meus dias mais preciosos? Um servicinho de merda pra oligarquia? É isso?" Quando passa na frente de uma casa de família - sendo que a mulher e a filha é o que ele busca a obra inteira - se pergunta como alguém pode morar em um subúrbio e se pergunta quem fica com a filha em casa enquanto os pais trabalham. Na página seguinte sua filha é abordada por dois garotos que a ofendem - de forma muito semelhante ao comportamento de Wilson a obra inteira - e ele reage partindo pra cima de um deles. Seria cômico se não fosse trágico.

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É esse seu comportamento: o que ele possuiu é valioso e o resto é merda. O que ele acredita é o certo e o resto do mundo está completamente errado. O que me assusta é que esta postura poderia ser encarada por qualquer um de nós. Não é difícil se afastar das pessoas realmente importante de nossas vidas e erguer esses muros para nos proteger de fracassos e insucessos. Sempre é mais fácil arrumar uma desculpa do que aceitar uma derrota. E, em todos os sentidos, Wilson é um grande perdedor.

O que dá mais pena ainda no personagem é ver que ele não aprende com o que passa. Você se desespera e tem vontade de entrar dentro da obra apenas para apontar uma escolha melhor do que a tomada na ocasião. Wilson, em seu desespero para ter uma família após a morte do pai, sequestra sua ex-mulher e filha (que é deixado bem claro que não é dele) para uma "viagem familiar de férias". De novo, seria engraçado se não fosse trágico. Sequestro esse que acabaria por colocá-lo atrás das grades. Também sempre joga na cara da ex mulher que ela se drogava, sendo que Pippi rebate mais de uma vez que nunca usou nenhum tipo de droga. Quando descobre mais para frente que ela morreu de overdose, sua reação é apenas um "eu sabia!". Se ela realmente era drogada ou começou a usar motivada pelo sequestro e acusações de Wilson, é inconclusivo.

É muito interessante a forma em que esse "drama" é contado em forma de comédia, sempre regada por muito cinismo. Você realmente dá risada com algumas páginas, como por exemplo a que um preso vai consolar um Wilson em prantos falando que sua mulher vai o perdoar quando na verdade ele chora de saudades de sua cadelinha. Em vários momentos o lado humano do personagem é mostrado, mostrando sentimentos próximos aos que temos e gerando identificação. Infelizmente não é uma constante, já que é só virar a página para ler um pouco mais dele sendo um completo babaca.

Tirando meu comportamento xiita em relação a alguns personagens e obras favoritas, sou contra levar muito a sério histórias em quadrinhos. Muitos fãs se degladeiam na internet em busca de referências obscuras, explicações para mistérios da humanidade e complexidade narrativa que faria Leonardo Da Vinci parecer um tio de 50 anos usando o Internet Explorer em um Pentium II, quando tudo que os roteiristas querem na grande maioria das vezes é apenas contar uma história divertida. Wilson foi uma das poucas obras que realmente me fez pensar na minha vida e em quão fundo posso chegar tomando atitudes aparentemente simples.


Você quando leu ou ler pode simplesmente dar risada das sacadas de Wilson e achar que perdei meu tempo falando besteiras. Esse é outro dos triunfos de Daniel Clowes: seja procurando diversão ou reflexão, você será bem servido. Só por isso já vale a conferida,

Recomendado para: quem procura uma leitura crítica e divertida ao mesmo tempo. Seu formato em páginas independentes, suas piadas ácidas e seus momentos de reflexão valem o investimento em tempo e dinheiro. Só não espere uma história com início, meio e fim. Na vida real nem todos amadurecem, alcançam seus objetivos ou alcançam um final feliz. Nem sempre a idade traz consigo a sabedoria.

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