A Dama do Crime

Agatha Christie é uma daquelas autoras que se confundem com os próprios personagens. Suas obras foram traduzidas em 103 idiomas diferentes, recorde ainda não batido por autor nenhum. A grande “Dama do Crime” conseguiu marcar a história da literatura policial com dois personagens incrivelmente marcantes (Hercule Poirot e Miss Marple), em uma época (década de 20) onde o conservadorismo ainda era (e continua sendo, em vários aspectos) marcante na terra de vossa majestade.

Numa terra dominada por homens e recém-desperta da primeira grande guerra mundial, a novelista escolhe como primeiro protagonista um belga baixinho e afetado, cujo nome de batismo heroico está em contraposição ao seu caráter meticuloso, reservado e tímido. No entanto, quando as suas células cinzentas entram em ação é que se denota a verdadeira força de Hércules, dotado de uma mente única e brilhante.

Não há como não deixar de comparar Poirot com Sherlock Holmes, o primeiro grande detetive seriado da história (Dupin foi escrito anteriormente por Poe, mas teve vida curta demais). Ambos são extremamente vaidosos sobre as suas próprias habilidades; ambos trabalham sozinhos e ajudam a polícia em casos nebulosos; ambos têm características de observação ímpares. No entanto, Poirot prefere investigar a personalidade e as características psicológicas da vítima e dos suspeitos, algo que Holmes prefere ignorar, normalmente. Enquanto Holmes observa e tira conclusões corretas a partir de dados ínfimos, Poirot investiga, descarta hipóteses e refaz suas suposições. Holmes é mais direto, seus contos são mais curtos e seus métodos, secos e quase sobrenaturais; Poirot é mais tortuoso, seus romances são longos e o método de investigação é orgânico, adaptado à situação. Na verdade, Poirot é um personagem muito mais humano do que Holmes e, às vezes, mais crível.

Depois de seis livros publicados, entre 1920 e 1925, Christie lança em 1926 “O Assassinato de Roger Ackroyd”, considerado um dos seus melhores livros. A autora contraria as “regras” dos romances policiais, apresentando uma mudança de última hora e uma forma narrativa que influenciaria as próximas gerações. Christie alcançava o sucesso, Poirot era lançado ao estrelato e a personagem Caroline Sheppard serviria como base para o seu segundo grande personagem: Miss Marple.

Miss Marple é uma velha senhora que parece mais à vontade entre seus rolos de lã do que envolvida em crimes monstruosos. Ela não é a primeira detetive mulher da história (The Female Detective, 1864, Andrew J. Forrester Jr e The Woman in White, 1860, Wilkie Collin brigam pela primazia), mas, com certeza, foi a primeira a se tornar mundialmente famosa. No seu primeiro caso (The Murder at the Vicarage), a personagem é apresentada de forma bem diversa da velha simpática que se eternizou nos demais livros e em filmes. Jane Marple é uma velhota enxerida e pouco simpática. Seus vizinhos a tratam de forma reservada. Mas o sucesso do livro mudou a concepção de Christie para com a sua criatura; ela alterou o seu comportamento e, aos poucos, Marple passou a se tornar uma senhora mais aprazível e curiosa. No entanto, diferentemente de Poirot, ela não trabalha com a polícia. Os casos chegam até ela por acaso, em circunstâncias diversas.  Provavelmente esta seja uma das razões para a detetive ter uma carreira literária mais curta, por assim dizer: Marple protagoniza doze livros e alguns contos; Poirot aparece em mais de quarenta e cinco livros e contos.

Algo interessante sobre a obra da autora é a preocupação com os seus personagens. Ela escreveu os dois últimos romances sobre Poirot (Cai o Pano) e Marple (Um Crime Adormecido) muito antes deles serem publicados. Escritos durante a Segunda Guerra Mundial, onde o número de obras publicadas, evidentemente, foi cortado ao mínimo necessário, ela manteve o final reservado aos seus maiores personagens trancafiados em um cofre até ser convencida de que não mais conseguiria escrever. Com medo de que não sobrevivesse às vicissitudes da guerra, temendo que outros autores seguissem escrevendo sobre seus personagens e como forma de prover uma fonte de renda extra ao marido e filho, ela desenvolve os livros em segredo. Muito mais tarde, em 1975 e 1976, ela autoriza a publicação de ambos, mostrando o capítulo final da vida dos seus detetives.

Há uma diferença notável entre Cai o Pano e o Problema Final (a suposta morte de Sherlock Holmes). Enquanto Doyle não aguentava mais escrever sobre Holmes – ele várias vezes considerava a própria literatura uma forma de escrita menor –, Christie tinha profundo respeito por Poirot e por aquilo que ele representava para ela. O Problema Final foi apresentado às pressas; é nítido que a preparação para o confronto final com Moriarty praticamente não existiu e foi forçada em seus últimos contos. Não há um conflito longo entre os dois protagonistas até o apoteótico final, coisa que poderia ser desenvolvida. Provavelmente, é um dos trabalhos mais fracos de Doyle.

Cai o Pano é uma obra completamente diferente. Além de ser um romance, o que proporciona ao autor uma maior possibilidade de desenvolvimento da trama, é notável a preocupação de Christie em formar um cenário crível para a morte de seu maior personagem. É um romance diferente dos demais, pois o assassino revela habilidades complexas e, às vezes, um pouco sobrenaturais, o que seria o único ponto negativo do livro. Na verdade, temos aqui uma mistura do suspense policial com o drama. O autor, aos poucos, mata o seu personagem favorito, descrevendo minuciosamente as circunstâncias da sua morte. De forma inteligente, ela retorna Poirot ao local do primeiro caso em que ele aparece (The Mysterious Affair at Styles), fechando o ciclo.

Poirot morre.

Agatha o seguiria poucos meses após.


A.Z.Cordenonsi
Pai, marido, escritor, professor universitário 

Tem dois olhos divergentes e muito pouco tempo
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