Ela (2013)



É bastante raro uma ficção científica ser indicada ao Oscar.
Cinema pra Academia mais ou menos segue sempre a mesma linha.
Acontece que pra conseguir driblar isso o diretor Spike Jonze aprontou mais uma das suas.
O filme “Ela” aposta na simplicidade e foco tal qual seu título, além de um realismo singular, mas, com certeza ainda é o mais complexo da lista de indicados de 2014.


Se a sequência inicial é parte dessa simplicidade, logo ela também complementa o retrato futurista elaborado no filme, e que é uma das visões futuras mais desconfortáveis já criadas.
E não.
Não é nada pós-apocalíptico.
Os prédios estão lá, e as bases da sociedade estão ainda sustentando nosso ethos social (pra bem ou pra mal).
Acontece que nesse futuro, as conseqüências que todo mundo com mais de 25 anos já suspeita serem algo em andamento, estão concretizadas.
A impessoalidade dos gadgets, e a incapacidade (ou falta de vontade) em se relacionar com outras pessoas pessoalmente fazem com que várias das nossas rotinas de hoje (aos poucos abandonadas por muitos já atualmente) sejam tradições moribundas de um convívio social em desuso.


O protagonista Theodore, interpretado pelo Joaquin Phoenix tem um emprego que é resultado dessas mudanças. Seu trabalho é um reflexo desses novos tempos, e ele é seguidamente elogiado por escrever belas e emocionais cartas para desconhecidos, sob encomenda. Bem simples: alguém está longe e solicita que a empresa redija uma carta simulando sua caligrafia, para outra pessoa. Em determinado momento, Theodore menciona que já escreve as cartas de um homem para sua esposa há vários anos, a ponto de saber os detalhes a empregar nas cartas que fazem a esposa feliz com o romantismo que na verdade vem de um desconhecido.


Mas enquanto Theodore é exímio em expressar os sentimentos alheios, garantindo a manutenção desses relacionamentos dos tempos futuros, ele mesmo fracassou nos seus, mesmo que isso não signifique ser anti-social.

Ele se afastou da esposa Catherine (Rooney Mara), e agora não sabe ou não quer mais uma relação assim. Ou talvez queira, e não sabe.
Ele procura em uma sala de bate-papo alguém interessado em compartilhar algumas palavras simulando sexo, e não se sente confortável quando uma possível parceira pra contato físico fala em algo que possa representar o começo de um envolvimento maior.
E não é só ele, óbvio.
E a participação da Olivia Wilde apenas bagunça mais os achismos do auto-conhecimento dele.

Prova disso é a moda dos OS. Sistemas Operacionais que simulam uma pessoa real. Capaz de aprender e evoluir a ponto de demonstrar idéias e frustrações que (é uma das discussões do filme) poderiam ser ou não chamados de sentimentos reais.
O OS adquirido pelo Theodore chama-se Samantha (dublada pela Scarlett Joahansson), e a solidão reiterada nas falas do protagonista encontra amparo na voz agradável e de bom-humor sempre presente, que pra alguém que nem o Theodore é algo a se apegar. E aí a situação se complica.
O mundo à volta, na Los Angeles futurista é algo que ninguém poderia dizer que é uma representação exagerada, ou implausível.
O mundo mudou, mas ainda é o mesmo.
As pessoas é que não são.


Mas prédios, carros, computadores, etc, parecem uma evolução das coisas que tem total chance de se concretizar tal qual é mostrado no filme.
Porém, talvez o mais assustador (e nem deveria ser, eu acho) é o modo como o avanço da nossa ligação com a tecnologia toma ares de domínio.
Não sem motivo o game em desenvolvimento simula as atividades domésticas rotineiras em família dos dias de hoje, mas que são uma aventura quando isso não é mais hábito. Ou que o interesse ao fazer cinema seja retratar a mínima sutileza da vida de outra pessoa. Uma busca por algo perdido.
Ainda que detalhe minuciosamente o relacionamento entre Theodore e Samantha, sobra espaço pra cenas em que o diretor mostra o personagem de Phoenix caminhando pela rua e vez ou outra vira a câmera pra constatar que várias outras pessoas também estão imersas nessas relações de afastamento, e que na verdade são tipos de amizade e amor em forma de simulacro, nos tornando aos poucos incapazes de um diálogo com uma pessoa real, ou desinteresse em uma conversa com alguém que, vai apresentar defeitos, e vez ou outra vai nos decepcionar. Essas projeções da pessoa perfeita possuem o efeito de uma droga.



O roteiro é tão denso, provocador e desafiador, e sem jamais precisar de um discurso panfletário pró ou contra alguma idéia. É meramente uma amizade que se forma, em um mundo super-povoado por solitários.
Ao seu modo, é uma visão aterradora.
Muitas são as vezes em que tudo que é mostrado é o rosto do Joaquin Phoenix conversando com a voz no seu fone de ouvido. Sem maneirismos de edição, e ainda assim envolvente.
E o que é talvez o exemplo máximo da capacidade do filme em absorver a atenção do público é quando, simulando um ponto de vista da curiosa Samantha, a tela fica sem nenhuma imagem, enquanto o diálogo continua, e nem por isso a cena fica menos interessante. É, na verdade um dos momentos mais importantes e fortes do filme.
Claro que isso não comprova apenas a competência do diretor, mas também justifica elogiar a perfeita atuação da dupla que é o filme todo.
Joaquin Phoenix é a fragilidade encarnada, e sua solidão não é sinônimo de ser loser. Ele apenas não sabe mais reagir a tudo isso. O protagonista é capaz de ser engraçado em um diálogo com um estranho, e conversa com os amigos Charlie (Matt Letscher) e Amy (Amy Adams, do também oscarizável “Trapaça”) seguidamente.
Enquanto isso, Scarlett Johansson relembra pra quem a resume ao papel da Viúva Negra de “Os Vingadores” que a capacidade de atuação dela vai muito além.
Afinal, é uma personalidade fascinante o que ela traduz com apenas o uso da sua voz, e Samantha não demora a ser mais do que o SO programado que Theodore baixou pro seu gadget inseparável.


O uso de imagens também merece um capítulo à parte. Por vezes com ares de Terrence Malick, as paisagens e direção de fotografia em muitas ocasiões substituem o rosto de personagens ou a ambientação do interior dos locais em que eles estão.
E mesmo quando usa flashbacks intercalados com os pensamentos atuais do protagonista isso não complica a complexa e profunda trama. Ainda é um longa-metragem bastante leve e divertido, ainda que de verdades incômodas que vão se formando.
Adicionando a trilha sonora hipnótica, pelo Arcade Fire e o Owen Pallett, composições ao piano, e a música indicada ao Oscar "The Moon Song", da Karen O, o filme “Ela” ganha tons de obra de arte, sem pra isso precisar ser uma bomba tediosa e pedante de 3 horas.


Enquanto assistia, alguns filmes me vieram à mente, mesmo que não necessariamente por serem parecidos: “(500) Dias Com Ela” do Marc Webb, pela abordagem inusitada do relacionamento, escolhendo uma perspectiva incomum; e “I’m Cyborg, That’s Ok” (2006) do Chan-Wook Park, o qual também criou uma espécie de sci-fi (ainda que ao seu modo absurdo) com romance sem cair na pieguice e prezando pela originalidade. E por que não, os dilemas do Sistema Operacional em muito remetem a Hal 2000 de 2001: Uma Odisseia no Espaço, ainda que aqui não seja uma comparação entre os filmes necessariamente.
Todas as referências mencionadas são obras inteligentes, e não é pela similaridade que eu os menciono.
E sim porque, da mesma forma que “Ela”, eles perverteram os padrões convencionados pra devolver alguma inventividade e buscar expressar emoções genuínas em um gênero que cada vez mais abre mão disso.
A camada de crítica no filme, e os desdobramentos finais apenas enaltecem esse vislumbre de genialidade que consegue ser sentimental sem ser piegas, e nas peculiaridades romântico sem deixar de ser uma visão do futuro perturbadora de modo que explosões e cenários destruídos geralmente não conseguem ser.



Quanto vale:


Ela. Recomendado para: conferir um excelente exemplo da ficção científica como questionamento do tempo presente.

Ela
(Her)
Direção: Spike Jonze
Duração:126 minutos
Ano de produção: 2013
Gênero: Drama/Ficção Científica

Confere NESSE LINK  a crítica de outros indicados ao Oscar 2014.

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