À meia-noite há 50 anos



Foi no dia 09 de novembro de 1964 que o cinema nacional conheceu o seu primeiro longa-metragem a bater no peito e se assumir um legítimo filme de terror. Quem é o autor dessa façanha? Ora, é o Zé do Caixão, quero dizer, José Mojica Marins, já que nesse caso, criador e criatura se unem em um ser só.

Aliás, convenhamos que é um tanto embaraçoso aferirmos que apenas em 1964 algum cineasta nosso ousou fazer uma obra assumidamente voltada para esse gênero, enquanto que filme de terror, no planeta inteiro, existe desde que o homem pensou em fazer os primeiros experimentos com imagem em movimento.


À meia-noite levarei a sua alma, em seu período de estreia, foi um campeão de bilheteria e comparado ao que ocorre hoje isso é uma grande proeza para um filme de terror, já que dentro do atual contexto nacional, um longa-metragem desse gênero falado em português e com elenco brasileiro (famoso ou não) precisa suar muito para encontrar o seu público. Para se ter uma ideia, em 2009, o próprio Mojica Marins lançou o Encarnação do Demônio e não teve êxito de bilheteria.


O fato é que À meia-noite levarei a sua alma deu ao cinema nacional o seu primeiro, talvez o único, (anti) herói do terror, que é o Zé do Caixão. Se no hemisfério norte eles possuem Jason Vorhees, Michael Meyers e Freddy Kruegger, aqui temos o Zé, ou melhor, o Coffin Joe, que é o epíteto do coveiro maluco lá em terras estrangeiras.

Na trama do filme, temos a história de Josefel Zanatas, um coveiro sádico conhecido como Zé do Caixão. O famigerado coveiro é um maníaco obcecado em gerar o “filho perfeito”. Para isso, ele não mede esforços em buscar a mulher que sirva para os seus propósitos, nem que para isso ele necessite assassinar, trucidar, estuprar, enfim.

O objetivo de José Mojica Marins com esse filme era mesmo assustar, chocar e tirar as pessoas da sua zona de conforto. Mas o que mais apavora nesse longa-metragem nem é tanto o sadismo do personagem, que inclusive antecipou muitas das cenas pérfidas que a gente vê hoje no cinemão mainstream, mas sim, o perfil completamente niilista do Zé do Caixão. O coveiro protagonista foge completamente dos padrões do vilão convencional do terror justamente porque, na concepção dele, suas atitudes eram necessárias e estavam além do certo e do errado. Os seus atos, para ele, não se submetiam aos conceitos do bem e do mal e Deus, deuses, demônios e demais amigos (e inimigos) imaginários nada significavam. Em outras palavras, Josefel Zanatas era um descrente completo. Ah! E isso tudo feito no maior país católico da América Latina.
 


Para se ter uma ideia do niilismo do personagem, reparem na narração proferida por ele logo no início do filme, que é proferida por um Zé de Caixão com cara de poucos amigos, olhando diretamente o espectador:

“O que é a vida? É o princípio da morte? O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue. O que é o sangue? É a razão da existência.”


Esse discurso (que lembra até a música Caminhos do Raul Seixas) exalta explicitamente a visão materialista da existência, de que a vida é um processo contínuo que é eternizado em nossos descendentes.
 
Diante de tudo isso, fico a imaginar qual foi a reação do público lá de 1964 quando se deparou com algo desse naipe. À meia-noite levarei a sua alma, com efeitos especiais práticos produzidos com parcos recursos, foi escrito e dirigido pelo José Mojica Marins. O longa-metragem faturou prêmios como o L'Ecran Fantastique e o prêmio especial no Festival de Cine Fantástico y de Terror de Stiges.

É até interessante hoje que a atual geração que nunca viu um filme do Zé, talvez nem saiba do grau de insanidade que permeiam algumas obras dele, principalmente se encontrar esse cara por acaso na TV, participando de programetes fuleiros de auditório e proferindo pragas absurdas com um sotaque interiorano.
O fato é que À meia-noite levarei a sua alma teve duas sequências. A segunda é o Esta noite encarnarei no teu cadáver, lançado em 1967. O terceiro é Encarnação do Demônio, lançado em 2009.




E já que é o assunto é Zé do Caixão, concluo esse texto com a seguinte praga:
“Você, é… você, que chama as obras do Mojica de trash sem saber a diferença entre filme trash e filme de terror… você, será condenado a passar a eternidade assistindo ao Transformers - vingança dos Derrotados."
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