Vida Sem Princípio (2011)



Existe um jogo curioso de expectativa no filme "Vida sem Princípio".
Isso porque, nesse trabalho do cineasta Johnnie To, apesar do cartaz, e das possibilidades de ser um filme de tiroteio dos mais legais, o caminho é bem outro.
Mas colabora com essa expectativa equivocada o começo do filme, que retrata a chegada da polícia em uma cena de crime, e apresenta o primeiro dos personagens principais do filme.
O Inspetor Cheung (interpretado pelo Richie Jen, em mais uma colaboração com o diretor) é parte do mosaico armado pelo roteiro, que relaciona 3 personagens principais na trama que possui no contexto seu grande trunfo.


O fato que interfere na vida dos personagens, os levando a situações fora de seu comum é a crise financeira que, ao chegar sacode o cotidiano de todos.

Além do Inspetor Cheung, a funcionária de banco Teresa (interpretada pela cantora pop Denise Ho)
é uma das pessoas sobre a qual as câmeras estão mais voltadas pra avaliar o impacto da crise na vida das pessoas comuns.
É quando começa a rotina dela no trabalho que o espectador pode se questionar se aquele começo de filme indicava mesmo que esse seria um filme de ação.
Vários são os minutos de interpretações convincentes desse dia-a-dia, às voltas com clientes em busca de mais dinheiro, dispostos a investir em manobras de alto risco, em cenas que mostrarão seu valor mais pra frente.
Quando aparece em cena o que é o personagem mais interessante do longa-metragem, Irmão Panther (interpretado pelo Ching Wan Lau), apesar de ser um cara leal à sua formação na máfia da velha guarda, ainda é um filme atípico.
O enfoque ainda é nos interesses individuais em conseguir mais dinheiro, e as somas trocam de mãos incessantemente, quase que emoldurando cada diálogo.
Nesse ponto, Panther oferece um viés oposto, de quem é leal aos ex-colegas mafiosos, "irmãos juramentados", enquanto os demais já não se importam com isso. Ao mesmo tempo em que é divertido assistir o personagem se desdobrando pra conseguir dinheiro pra ajudar os seus "irmãos", ele é também um elo com o cinema de máfia, de estruturas organizacionais, e regras de conduta entre aliados, que tanto apetece ao cineasta Johnnie To.
Os três protagonistas convivem no mesmo universo de oportunistas e desesperados, sem que tenham contato direto um com o outro, mas influenciando no destino dos demais.
Dentre eles, o que apresenta o arco menos envolvente é o Inspetor, que apesar de trazer seus problemas familiares para a história, empalidece diante dos demais.


E quando já não se espera, os momentos de ação e tensão aparecem na trama, em consequência dos desdobramentos da crise financeira que pega todo mundo de surpresa, e requer medidas desesperadas, com destaque pra cena do estacionamento.
É nesse momento que se percebe que essa escolha por um olhar mundano de uma crise que afetou o mundo inteiro, é sim uma decisão que o roteiro tinha desde o início como forma de conduzir a um final bem amarrado. A montagem e o texto em harmonia e essa história em tantos momentos distintos justifica suas nuances em um resultado que tem significado.


Um fã eventual da obra do Johnnie To pode se decepcionar com a ausência de tiroteios (não há sequer um disparo de arma de fogo no filme, ainda que isso não impeça o cineasta de elaborar cenas de violência).
Fato é que, na sua longa trajetoria, o cineasta de "Exilados", "Drug War", e da franquia "Eleição", já explorou vários outros gêneros cinematográficos, apesar de ter nos seus trabalhos mais aclamados um direcionamento que lhe pareça restritivo, em se tratando das temáticas que aborda.
Aceitando o quanto antes que esse é um trabalho centrado no drama, com características de um humor ácido corrosivo, mas sutil, o espectador consegue extrair mais do filme, que subverte nossas expectativas e as dos personagens, com narrativa cadenciada, e desapego às exigências de ser apelativo pra na base do exagero soar "mais cult".
Provavelmente uma segunda visita fará de "Vida sem Princípio" um filme ainda melhor e mais completo, e que mostra com qualidade outra das muitas vertentes de cinema que o diretor possui no repertório.


Quanto vale:



Vida Sem Princípio. Recomendado para: perceber de vez que o rótulo de "diretor de filmes de máfia e tiroteio" não é o ideal pro Johnnie To.

Vida sem Princípio
(Dyut Meng Gam)
Direção: Johnnie To
Duração: 107 minutos
Ano de produção: 2011
Gênero: Drama

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